terça-feira, 9 de novembro de 2010

O acocoramento real

Por Chico Alencar

"O que me interessa é a Política com P maiúsculo, a Política que é história." Joaquim Nabuco (1849/1910)

É consenso: o próximo Congresso Nacional garantirá maioria ao Executivo. Grande parte dos seus componentes, "suscetível" a argumentos sonantes mas nem sempre visíveis, dará sustentação incondicional ao governo. É esta subserviência sem fundamento programático - e não a acolhida a iniciativas populares, ministro Gilmar! - que coloca o Legislativo de cócoras. Péssima tradição nacional.




Mandatados por 71% dos 135.804.433 eleitores para representá-los na Legislatura 2011/2015, os parlamentares aceitarão como natural essa continuada redução de sua função? O acocoramento do Poder Legislativo apequena a República e desrespeita a Constituição, que o define como o primeiro dos Poderes da União. O traço do arquiteto colocou o prédio do Congresso Nacional no centro da Praça dos Três Poderes, em Brasília, para destacar sua relevância. Relegado à condição de despachante dos Executivos, casa homologatória, espaço de fisiologismo e "carreiras" medíocres, o Parlamento entra em ocaso.



Quase todos os partidos vivem um célere processo de nanismo moral e político, afrouxando fronteiras éticas e ideológicas. É tão deplorável como comprovável: na disputa eleitoral, somas milionárias - cujos doadores ainda não foram revelados - bancaram alianças estapafúrdias, com o adversário figadal de ontem sendo o "mais novo amigo de infância" de hoje. A política institucional, no Brasil do século XXI, perdeu o pudor, o compromisso com a coerência. A corrupção é banalizada, inculca-se no senso comum a ideia de que sem concessões de todo tipo não se logra êxito. Aceitase que o único caminho para o poder é o calçado por malfeitorias.



Para que nossa democracia não seja luxuosa hipocrisia e representante do povo aquele que tem um bom emprego, renovável a cada quatro anos, cumpre fecundá-la de valores republicanos. E entender o Parlamento como espaço do dissenso, do embate sobre grandes projetos nacionais e mundiais: somos pessoas, classes e nações planetárias.



Saramago, com sua palavra cortante, alertava para o perigo de um voto que é só delegação: "Até que venha nova eleição, o eleito terá a seu favor o respaldo dos votos de seus eleitores para violar os fundamentos da democracia. Essa renúncia legaliza o saque ao poder por parte da minoria eleita."



Contestando a composição majoritária de uma base servil, mantida pelo "toma lá dá cá" dos acertos de gabinete, é preciso que, a exemplo do belo processo que culminou com a ampliação das inelegibilidades do Ficha Limpa, cobre-se um Legislativo independente, fiscalizador, propositivo. E que sua pauta inclua as inadiáveis reformas política, agrária, urbana e tributária, a auditoria da dívida pública, a ampliação de recursos para educação e saúde, a garantia dos direitos dos trabalhadores, a centralidade do cuidado ambiental e políticas internacionais que não aceitem hegemonismos. Um Poder aberto à participação popular, que tenha efetividade na superação da maior e mais persistente chaga social do Brasil: a desigualdade.



"Utopias generosas nunca fazem mal" - afirmava Joaquim Nabuco, deputado em época de grandes transformações. "O que elas têm de impraticável fica esperando indefinidamente pela sua hora; mas o sentimento que as inspirou, e as impressões que elas criam, concorrem sempre para realizar algum bem." Futuros deputados e senadores do Brasil, não se divorciem dos movimentos vivos da sociedade, exerçam seus mandatos com grandeza!



Chico Alencar é deputado federal (PSol-RJ), reeleito.
[Publicado em O Globo de 2/11/2010]

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